terça-feira, 9 de junho de 2009

Pela cultura do bem e contra a cultura "de espantalhos"

Sérgio Henrique. Publicado no Dia 07/06/2009


Foto: Alberto Leandro

Recém-empossado na presidência da Comissão Norte-rio-grandense de folclore, o historiador e antropólogo Severino Vicente está à frente da entidade não governamental que discute os rumos das manifestações folclóricas do nosso Estado.

Fundada em 3 de abril de 1948, a CNF é renovada de quatro em quatro anos. Entre seus ex-presidentes estão Manoel Rodrigues Melo, Hélio Galvão, Veríssimo de Melo, Deífilo Gurgel e Iaperi Araújo. A eleição é feita reunindo sócios efetivos da Comissão no RN, e em Assembleia Geral Ordinária são eleitos o presidente e toda a diretoria. Severino foi aclamado ao cargo, já que era vice-presidente de Iaperi.

Nesta entrevista, o novo presidente fala sobre a identidade folclórica do Rio Grande do Norte, a necessidade de sua valorização, a luta dos grupos folclóricos do Estado e as irresponsabilidades de quem promove espetáculos para vender eventos culturais como um negócio.

CORREIO DA TARDE - Como o Sr. define o folclore?

Severino Vicente - O conceito de folclore não foi definido por mim, mas por uma comissão reunida no 8º Congresso Brasileiro de Folclore, realizado em Salvador/BA. Na ocasião, as discussões com representantes da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e do IBEC (Instituto Brasileiro de Educação, Cultura e Turismo) fizeram uma releitura da carta elaborada no I Congresso Brasileiro de Folclore, realizado no Rio de Janeiro em 1951. Esta nova conceituação define folclore como sendo o conjunto de criações culturais de uma comunidade, baseado nas tradições de expressões individuais e coletivas, que representem sua identidade social. O folclore é também caracterizado pelo respaldo na aceitação coletiva, na tradicionalidade, dinamicidade e funcionalidade.

Quais serão suas primeiras medidas à frente da CNF?

Criar um site da Comissão. Neste site vamos convocar a comunidade e os estudantes de escolas públicas e privadas a participar de um momento de reestudo e reavaliação da cultura potiguar. Vamos procurar interagir com as universidades, entidades de educação, secretarias municipais e estaduais de cultura. A cultura é importante para que o jovem participe de outras formas de vivência, saindo do padrão quadro e giz. As portas devem estar abertas à cultura do bem.

Cultura do bem?

Isso. A cultura que é feita para educar as pessoas, e não para iludir as massas. O que ocorre muitas vezes em algumas cidades do nosso Estado e em vários locais do país é uma verdadeira cultura de espantalhos. Pessoas, prefeituras e órgãos estatais querem chocar e não se preocupam em deixar uma leitura educacional e cultural para os espectadores. Por exemplo, é inconcebível espetáculos como o que presenciei há alguns anos, mostrar erros históricos como colocar Maria Bonita invadindo Mossoró com o bando de Lampião em 1927, sendo que eles só se conheceram anos depois. Para mim, qualquer apresentação que não tiver uma leitura prévia não é útil à sociedade. Não sou contra nada disto. Apenas sou contra o uso do dinheiro público para promover eventos que promovam esta cultura de espantalhos.

O Sr. é historiador e antropólogo. Considera sua formação importante para a consolidação de um plano abrangente para incentivo aos grupos folclóricos no RN?

Minha formação me dá condições de ter uma visão geral da ciência do folclore. Aqui no Estado, ainda se trabalha um conceito antigo, de 1846, concebido na Inglaterra, a ideia de significação dos termos "folk" e "lore". Hoje em dia, não podemos regredir e nos limitarmos a ver somente isto como folclore. Temos que ver o folclore como qualquer outra ciência, que tende a acompanhar mudanças e transformações do mundo moderno. O folclore não é um museu à moda antiga. Pode ser um museu, mas um museu moderno.

Porque diversos grupos de folclore estão parados, como o Caboclinho (Ceará-Mirim), Marujada (Sen. Georgino Avelino) e Manelopau (Dr. Severiano Melo)?

Por falta de uma política cultural direcionada à preservação dessas manifestações populares. Muitos grupos ativos não têm estima elevada. É importante não só dar dinheiro, mas incentivá-los para que apresentem a sua arte, sobretudo nas escolas e em eventos oficiais. Em minha opinião, todo evento do Governo deveria ter apresentações folclóricas e de grupos parafolclóricos.

O Sr. critica o governo. É contra a política cultural do governo Wilma?

Não faço oposição ao governo, afinal somos uma ONG que apenas tem uma sala na Fundação José Augusto. Procuro apenas abrir as portas para dizer que estamos ao lado dos grupos folclóricos. Por isto precisamos do governo.

Diversos grupos folclóricos do nosso Estado estão em vias de acabar. Qual a expectativa com relação à política de editais das fundações culturais do Estado (FJA) e município (Funcarte)?

Estes grupos estão para acabar por falta de incentivo e de apoio. Eu acho boas ideias o lançamento de editais culturais. Mas não acredito que vá funcionar porque como já falei, não adianta dar dinheiro. É necessário que haja valorização dos folguedos, para que eles não percam a sua essência.

É verdade que vários grupos e mestres são prejudicados pelo processo burocrático das inscrições nestes editais?

Infelizmente é verdade. Inclusive orientei a Fundação José Augusto a colocar pessoas para ajudar no preenchimento dos formulários de inscrição. Muitos nem sabem da existência dos projetos. Vários, inclusive, não sabem ler. Se pensarmos positivo e fizermos com que os investimentos e a valorização se concretizem, estaremos proporcionando ao RN o terceiro grande momento do folclore potiguar.

Terceiro? Quais foram os outros?

O primeiro foi a vinda de Mário de Andrade, entre 1928 e 1929. Ele e Cascudo fizeram aqui em Natal a primeira classificação das manifestações folclóricas brasileiras. O segundo foi a administração do ex-prefeito Djalma Maranhão, que teve como base de sustentação de seu governo a cultura do povo.

As pessoas do nosso Estado valorizam nossa cultura?

Temos vários grupos folclóricos que encantam o Brasil inteiro. O Boi de Reis de Pedro Velho, por exemplo, esteve em Olinda, Guarujá/SP e Minas Gerais e as pessoas gostaram muito. O Caboclinhos de Ceará-Mirim é outro grupo que vai fazer apresentações pelo Brasil inteiro. O Congresso Brasileiro de Folclore, que reúne estudiosos de todo o mundo, pediu que levássemos a Chegança e o Fandango. Enfim, nossas manifestações só não encantam o RN. Até Mário de Andrade se encantou com a cultura do Estado, quando esteve 45 dias com Cascudo aqui em Natal. Muitas vezes falta que o próprio norte-rio-grandense dê valor ao que é da terra.

Já que tem pessoas que não valorizam, podemos dizer que nem mesmo sabem o que é o nosso folclore. Afinal, o que forma o folclore potiguar?

As danças. Nossas danças folclóricas são as mais belas, autênticas, legítimas e originais do folclore brasileiro. Não existe em todo o país um Boi de Reis, um Araruna, Fandango e Chegança iguais aos do nosso Estado. Manifestações puras, com as características originais, só no RN. Este é o nosso diferencial.

Fonte: http://www.correiodatarde.com.br/editorias/cultura-43835

Folclore potiguar precisa de mais atenção



Daniela Pacheco - Editora de Cultura, publicado em 05 de junho de 2009

Os historiadores Severino Vicente e Gutemberg Costa assumiram no mês passado a presidência e vice-presidência da Comissão Norte-Riograndense de Folclore. Instituição que foi criada por Câmara Cascudo há 60 anos e que tem a responsabilidade de estudar, preservar, divulgar, promover e valorizar a cultura popular do Estado. O JORNAL DE HOJE conversou com eles sobre o folclore potiguar. Confira!

O Jornal de Hoje - Por que o Rio Grande do Norte é importante para o contexto cultural do Brasil?

Severino Vicente – O Rio Grande do Norte é um dos estados brasileiros mais privilegiados quanto à diversidade e conteúdo de cultura popular. Em primeiro lugar, é a terra de Câmara Cascudo, considerada por muitos dos seus contemporâneos um dos maiores folcloristas do Brasil. Outro ponto é que o nosso Estado é o único do Brasil que ainda mantém vivo quatro grandes autos populares, que são: Boi de Reis, Fandango, Chegança e Congo. Sem falar nas danças tradicionais. Em terceiro lugar, no final dos anos 20, o Rio Grande do Norte recebeu o escritor Mário de Andrade que junto com Cascudo realizou a primeira classificação sobre os nossos autos e danças folclóricas. Sem contar os nossos mestres e gênios da cultura popular.

O Jornal de Hoje – O senhor poderia citar alguns nomes?

Severino Vicente - Muitos... O Rio Grande do Norte é conhecido por ser o berço do maior embolador do Brasil que foi Chico Antônio, esse mestre foi personagem de inúmeros livros, musicas, artigos de jornais e revistas, entre outros. Temos Chico Daniel que foi um dos maiores mamulengueiros do país. A maior romanceira Dona Militana, que dos 54 romances da península ibérica que estam documentados, ela conta 34. Outro nome importante é o de Mestre Cornélio que salvou o mais importante patrimônio estético da cultura nordestina medieval – o araruna. Por tudo isso, é que a cultura popular do nosso Estado tem que ser valorizado.

O Jornal de Hoje – O senhor acha que a cultura popular potiguar não é valorizada?

Severino Vicente - Valorizada? Pelo contrario. Não existe um projeto direcionado para o patrimônio popular do Rio Grande do Norte. Os gestores públicos são sugestionados quando a mídia divulga alguma coisa.Eles correm para cima. Só querem tirar partido do artista.

O Jornal de Hoje – Como assim, tirar partido do artista?

Severino Vicente - Esquecem que o artista é uma pessoa. E, que precisa comer, morar... E, principalmente, precisam ter mais espaço e oportunidades para apresentar a sua arte. Eles (os artistas) estam perdendo a estima porque não são convidados para se apresentarem em lugar nenhum.

O Jornal de Hoje – Os senhores podem citar algum exemplo?

Severino Vicente - Claro! Por exemplo, o Araruna que esteve a pouco tempo na mídia, depois da morte de seu Cornélio não fez mais nenhuma apresentação. Essa informação partiu da diretoria numa reunião com a Comissão. Outro caso, é do filho de Chico Daniel, com o pai ele aprendeu a arte dos mamulengos, que terminou por encostar a mala de bonecos num canto qualquer e foi trabalhar como ajudante de pedreiro em Itajá. Não podemos esquecer de falar do mestre dos Congos, José dos Santos Correia que se encontra sem nenhum amparo muito doente no hospital Walfredo Gurgel. E, a comissão não tem recursos financeiros para ajudá-lo.

O Jornal de Hoje – Então, deveria ter um apoio maior dos gestores públicos ao que se refere a valorização da cultura e dos artistas que fazem a cultura popular do Rio Grande do Norte?

Gutemberg Costa – Com certeza! A comissão Norte-Riograndense de Folclore está aberta para dialogar com ele. É importante que as manifestações do folclore sejam equiparadas às demais formas de expressão cultural, bem como seus estudos aos demais ramo das humanidades conseqüentemente deve ter o mesmo acesso, de pleno direito, aos incentivos públicos e privados concedidos à cultura em geral e às atividades científicas através da pesquisa, ensino-educação, turismo, atividades parafolclóricas, comunicação de massa, publicações, intercâmbio, hierarquias.

O Jornal de Hoje - E, tem algum projeto de incentivo cultural em desenvolvimento na esfera política que os senhores apostam?

Gutemberg Costa – A comissão está ansiosa para ver posto em prática o RPV, a Lei de Registro do Patrimônio Vivo que é um espécie de bolsa salário que não resolverá em curto prazo. Mas, acreditamos que em médio já começará afazer efeito. O problema é que tem de ser aplicada o mais rápido possível, pelo simples fato que se demorar muito, os beneficiados, no caso, os mestres da cultura potiguar que já estam em idade avançada não estarão vivos para serem beneficiados. Mas, é importante lembrar que incentivar não é só dar roupa ou salário. Tem que dar oportunidade de gerar apresentações e não deixar cair no ostracismo cultural que se encontra o folclore potiguar na atualidade.


Fonte: http://www.jornaldehoje.com.br/portal/noticia.php?id=16501

Discurso de posse proferido no auditório Robson Faria, Assembléia Legislativa do RN, 20/05/2009

PORQUE ESTAMOS AQUI

Para salvaguardarmos a cultura popular potiguar, parte integrante do legado cultural brasileiro, nascido da utopia dos descobrimentos, modelados pelos ensinamentos cristãos, com a água e pó sal do batismo, o madeiro sagrado, a escolha de santos como padroeiros, capelas e templos nos engenhos e fazendas de gado uma vida que girava entre o sagrado e o profano, a fé e o pecado, devendo obediência aos senhores de terras, instalados em casarões fortificados, armados e municiados, numa sintonia quase perfeita com padres santos, rosários, terços e novenas em nome da fé.
Nenhuma sociedade no mundo foi formada com esse quadro genético, eis a razão de sermos diferenciados e termos a mais rica diversidade cultural do planeta.
O processo da globalização, com suas constantes e rápidas mudanças, traz em seu contexto uma produção conflitante com nossa realidade sócio-cultural, um momento da vida brasileira que preocupa os estudiosos da folclorística.
Sabemos muito bem que como todas as demais ciências, o folclore também acompanha o processo de mudanças evidenciadas por um mundo em transformação. Ocupa novos espaços, em qualquer contexto social, por mais complexo que seja o estágio cultural de seus componentes, ao nível de produção, adoção ou ainda de consumo dirigido. Mas sabemos muito mais que é preciso estudá-lo, conhecê-lo, porque ele é a ciência de salvaguarda da cultura popular em qualquer parte do mundo. No caso Brasil, sobretudo o Nordeste, em particular o Rio Grande do Norte, o folclore é um documento que precisa ser respeitado e preservado para evitar o uso equivocado, com paradigmas estereotipados não condizentes aos princípios fundamentais de uma ciência tão complexa e importante que de um lado perfila, com suas justas aspirações na busca da preservação da identidade nacional e, do outro, associa os fatos da história cotidiana no processo de afirmação social. Nós brasileiros temos, que fazer a opção entre preservar, defender e divulgar este rico e fabuloso patrimônio estético ou vê-lo aprisionado no altar da globalização
Nos dias atuais, o folclore não pode, nem deve ficar preso aos pontos básicos pelo qual foi visto durante muito tempo, quais sejam: anonimato, persistência, antiguidade e oralidade. Ainda que esses aspectos de forma insofismável permaneçam sendo os pilares que sustentaram a base de todo os estudos da hoje reconhecida Ciência do Folclore.
Foi abolida a clássica definição do folclore, entendido como complexo das classes subalternas e instrumentais, que se contrapunha às classes oficiais, eruditas, hegemônicas e dominantes. Precisamos apenas entender: que vida, que povo, que classes, de que forma e em que circunstância foi e é desenvolvido o fato folclórico.
Não é mais aceitável o tradicionalíssimo conceito da carta de Willian John Thoms (1803-1855), Folk (povo), Lore (saber), oriundo do antigo inglês falado na Inglaterra.
Atualmente o folclore passa por uma releitura, com nova conceituação, visibilidade e dinâmica, aos direcionamentos que deve interagir como instrumento de salvaguarda da cultura brasileira, que guarda ainda um rico acervo da cultura medieval, sem ter vivenciado a Idade Média. Nenhum país no mundo detém tão rico acervo, daí a preocupação dos estudiosos para que a sociedade brasileira tome conhecimento desse fato e passe a valorizar esse rico mosaico de cultura popular não existente em nenhuma parte do planeta.
Em 1995, durante a realização do VIII Congresso Brasileiro de Folclore, realizado na cidade de Salvador, Bahia, ao qual a Comissão Norte-rio-grandense de Folclore esteve presente, reuniram-se os mais expressivos estudiosos da ciência de Thoms. Nessa oportunidade procederam a releitura da Carta do Folclore Brasileiro, aprovada no I Congresso, realizado no Rio de Janeiro, de 22 a 31 de agosto de 1951.
Esta releitura, ditada pelas transformações de uma sociedade em mudança e pelo progresso das Ciências Humanas e Sociais teve ampla participação de estudiosos dos diversos pontos do país, e também de representantes da UNESCO, apresentando suas recomendações sobre a salvaguarda do folclore por ocasião da 25ª Reunião da Conferência Geral, realizada em Paris, em 1989 e publicada no Boletim nº 13 da Comissão Nacional de Folclore, janeiro/ abril de l993.
Na nova Carta do folclore Brasileiro está explícita a moderna conceituação de folclore, como sendo: “o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições, expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social, respaldado na aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade e funcionalidade”. Folclore e cultura popular são equivalentes, como preconiza as recomendações da UNESCO, contudo a cultura popular permanece no singular como única e legítima, embora existam tantas culturas, quanto sejam os grupos que a produzam, em contextos naturais diferentes, específicos.
Os estudos de folclore, como parte integrante das Ciências Humanas e Sociais, devem ser realizados de acordo com metodologias próprias dessas Ciências.
Sendo parte integrante da cultura nacional, as manifestações do folclore são equiparadas às demais formas de expressão cultural, bem como seus estudos aos demais ramos das humanidades, conseqüentemente deve ter o mesmo acesso, de pleno direito, aos incentivos públicos e privados concedidos à cultura em geral e às atividades científicas através da pesquisa, ensino-educação, turismo, atividades parafolclóricas, comunicação de massa, publicações, intercâmbio, hierarquias.

Severino Vicente – Presidente da Comissão Norte-Riograndense de Folclore